8 de setembro de 2010

Detran no reino do faz de conta


Departamentos de trânsito vivem sob permanente suspeita de cobrança de propina. Para Miguelzinho, símbolo da corrupção nos anos 80 em SP, "caixinha" faz parte da cultura brasileira

O recente relatório da Corregedoria da Polícia Civil, que apontou indícios de envolvimento de 162 delegados do Detran e de Ciretrans de São Paulo em fraudes de mais de R$ 40 milhões, e a prisão de 44 pessoas no Rio Grande do Sul por crime semelhante comprovam, mais uma vez, que a "caixinha" nunca acaba nos departamentos estaduais de trânsito. Só os cabeças é que mudam.


O ex-investigador Miguel da Silva Lima, o Miguelzinho, que nos anos 80 foi apontado como símbolo de corrupção no Detran, afirma que a cultura do brasileiro o faz acreditar que o sistema só funciona à base da propina. "Eu vejo a engrenagem montada em cima de um faz de conta. Ninguém respeita nada", diz.


Para testar os serviços, o DIÁRIO ligou ontem para três autoescolas pedindo informações sobre renovação de carteira de habilitação. Duas delas sugeriram que, com pagamento de propina, seria possível obter o documento sem a necessidade de fazer a prova.


"Hoje as coisas estão mais complicadas. Eles criam dificuldade para vender facilidade", disse o funcionário de uma autoescola da Zona Norte. A sugestão dele era a realização do curso teórico de direção defensiva e primeiros socorros, durante três dias, para ficar livre da prova escrita.

"Não é que não tem prova, mas aí é uma coisinha à toa, porque o que vale é a presença", argumentou.


Em outra autoescola, na Zona Oeste, a funcionária explicou que, para fazer a prova, era possível estudar sozinha por apostila. "São 30 perguntas. Se errar nove, a senhora é reprovada, fica uma semana bloqueada e precisa fazer prova de novo". A repórter, então, disse que era professora e não tinha tempo de fazer o curso. Além disso, afirmou que se fosse reprovada teria problemas porque precisava do carro para trabalhar. A resposta foi rápida. "Então passe aqui que a gente conversa".


O advogado Cyro Vidal Soares da Silva, que já foi diretor e corregedor do Detran, afirma que o sistema favorece a corrupção, na medida em que não dá infraestrutura para acelerar o atendimento ao público.


Pontos vulneráveis


1 Prova práticaCostuma-se dizer que quem não paga "caixinha" ao examinador corre o risco de ser reprovado no exame, mesmo sabendo dirigir.


2 Agrado normalAutoescolas admitem que é normal dar um "agrado" a funcionários do Detran para apressar a documentação de seus clientes.


3 Emplacamento mais caroÉ difícil o dono de um carro achar a placa que deseja. Se não quiser esperar, ele poderá pagar pela mais cara, que sai na hora.


4 Pontuação transferidaEmpresas especializadas em fraudes costumam oferecer cartas fantasmas para transferir a pontuação de multas.


entrevista Miguel Lima, o Miguelzinho - ex-agente do Detran
"Ninguém cumpre nada, ninguém respeita nada"


Foto: Anderson Prado/ Diário SP


Miguelzinho foi acusadp de comandar um dos maiores esquemas de corrupção no Detran de São Paulo nos anos 80DIÁRIO_ Como o senhor vê as recentes denúncias de corrupção no Detran?
Jean Jacques Rousseau (filósofo suíço considerado um dos maiores pensadores do século 18) já dizia que a corrupção é inerente à sociedade. Isso ocorre não só no Detran, mas em todo lugar. Aliás, quem estiver atento às mazelas, às roubalheiras, às fraudes desse país e quiser aprender, inclusive, a escola está em Brasília. E só prestar a atenção.

Mas, no Detran, vira e mexe há uma denúncia. Por quê?

O Detran tem uma peculiaridade, é um órgão muito aberto, tem um fluxo de pessoas inimaginável e, por isso, a coisa aparece com mais frequência.

Autoescolas e despachantes incentivam a "caixinha"?

Na minha época, o que faziam, e eu percebia isso com muita nitidez, é que, sabendo das dificuldades do sistema, colocavam no contrato uma quantia a mais para se virarem lá dentro, e as pessoas não reclamavam.
Pagar para ter vantagem também não é corrupção?

É uma série de coisas. Você precisa submeter o carro à vistoria e, em geral, tem pressa. É um saco ir até lá, há burocracia, você perde tempo. Então, é muito mais prático dar R$ 100 a uma pessoa e se livrar daquele transtorno. É o que chamam de corrupção, mas acho uma coisa totalmente lícita, desde que não seja exigência. Eu não me submeto a isso, evito o quanto posso, assim como a maioria das pessoas. A estrutura inteira é assim. Eu vejo a engrenagem montada em cima de um faz de conta. Ninguém cumpre nada, ninguém respeita nada, ou cumpre tudo e respeita tudo. Você vê isso a olho nu. Agora, você me pergunta por que as pessoas se propõem a isso? Porque já está na cultura delas que o sistema funciona assim.

Como mudar isso?

Na minha avaliação, a estrutura político-social brasileira foi construída com material podre. Ela tinha que ser totalmente implodida e começar de novo. Tem que mudar a cultura das pessoas. A podridão vem do topo da pirâmide para baixo.

Quem alimenta mais a "caixinha", as autoescolas ou os despachantes?

Autoescolas, sem dúvida. Hoje tem o Curso de Formação de Condutores e são elas que fazem. Acho um erro. É muito fácil manipular. Acho até que você pode fazer tudo errado ou não responder e outro arrumar.

Há disputa para trabalhar em Detran ou Ciretran? É mais fácil ganhar "extras" lá?

Hoje não sei, mas antes sim, principalmente diretores. O indivíduo que coloca o lacre, por exemplo, ganha uma fortuna com aquilo. Vai junto com o documento R$ 20, R$ 30. No fim do dia chega a R$ 3 mil. Você vai escolher a placa e nunca tem a que quer. Então, eles oferecem o modelo especial, que é muito mais caro. Como você tem pressa, não pode esperar, acaba aceitando. Eles se valem disso. O Detran é um órgão de muita influência, de muita força política, então, os políticos têm interesse nele.

Veja o que foi apurado pela Corregedoria

O relatório de 129 páginas da Corregedoria da Polícia Civil aponta indícios de envolvimento de 19 delegados do Detran e 143 de Ciretrans em crimes de fraude em licitação e execução de contratos, sonegação fiscal, peculato (extorsão praticada por funcionário público), corrupção ativa e passiva, prevaricação, falsificação de documentos, advocacia administrativa e formação de quadrilha.

40 milhões de reais é o valor do prejuízo inicial da fraude.

A proposta do delegado corregedorDesvincular o Detran da Secretaria da Segurança Pública e subordiná-lo a outra secretaria de estado.

Segurança Pública só em três estados.

O Departamento Estadual de Trânsito é subordinado à Secretaria da Segurança Pública em apenas três dos 27 estados brasileiros: São Paulo, Minas Gerais e Santa Catarina.
Denatran diz que fiscalização é dever da polícia.

Ninguém assume a responsabilidade de fiscalizar casos de corrupção e desvio de conduta de funcionários nos órgãos de trânsito. O Ministério das Cidades e o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) afirmam que não têm competência para investigar e atribuem a tarefa à polícia ou ao Ministério Público (MP).

Já o Detran afirma que a fiscalização no departamento é feita tanto pela corregedoria da polícia, quanto pelo MP, Tribunal de Contas e Secretaria da Fazenda. Mas alega que a corregedoria só concluiu o inquérito recente de corrupção porque a diretoria do órgão de trânsito participou ativamente dos trabalhos.
Segundo a assessoria do Detran, a fiscalização nas Ciretrans é feita pelo delegado seccional de polícia da cidade a que pertencem, porque estão vinculadas a essas delegacias. O Detran, explica, só faz correição extraordinária quando recebe denúncia.

O advogado Cyro Vidal, ex-diretor do Detran, afirma que o grande problema nas Ciretrans do interior é a falta de oficiais administrativos para atender o público. "Como o sistema não funciona, o usuário paga para não ficar na fila", diz. Segundo ele, em algumas cidades autoescolas pagavam o salário do atendente.

O Detran nega. Segundo a assessoria de imprensa, a medida está proibida desde 2009. Além disso, foram contratados recentemente 1.733 oficiais administrativos concursados.

Os serviços também estão sendo informatizados para facilitar os usuários, inclusive emissão da carteira de habilitação.

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