Departamentos de trânsito vivem sob permanente suspeita de cobrança de propina. Para Miguelzinho, símbolo da corrupção nos anos 80 em SP, "caixinha" faz parte da cultura brasileira
O recente relatório da Corregedoria da Polícia Civil, que apontou indícios de envolvimento de 162 delegados do Detran e de Ciretrans de São Paulo em fraudes de mais de R$ 40 milhões, e a prisão de 44 pessoas no Rio Grande do Sul por crime semelhante comprovam, mais uma vez, que a "caixinha" nunca acaba nos departamentos estaduais de trânsito. Só os cabeças é que mudam.
O ex-investigador Miguel da Silva Lima, o Miguelzinho, que nos anos 80 foi apontado como símbolo de corrupção no Detran, afirma que a cultura do brasileiro o faz acreditar que o sistema só funciona à base da propina. "Eu vejo a engrenagem montada em cima de um faz de conta. Ninguém respeita nada", diz.
Para testar os serviços, o DIÁRIO ligou ontem para três autoescolas pedindo informações sobre renovação de carteira de habilitação. Duas delas sugeriram que, com pagamento de propina, seria possível obter o documento sem a necessidade de fazer a prova.
"Hoje as coisas estão mais complicadas. Eles criam dificuldade para vender facilidade", disse o funcionário de uma autoescola da Zona Norte. A sugestão dele era a realização do curso teórico de direção defensiva e primeiros socorros, durante três dias, para ficar livre da prova escrita.
"Não é que não tem prova, mas aí é uma coisinha à toa, porque o que vale é a presença", argumentou.
Em outra autoescola, na Zona Oeste, a funcionária explicou que, para fazer a prova, era possível estudar sozinha por apostila. "São 30 perguntas. Se errar nove, a senhora é reprovada, fica uma semana bloqueada e precisa fazer prova de novo". A repórter, então, disse que era professora e não tinha tempo de fazer o curso. Além disso, afirmou que se fosse reprovada teria problemas porque precisava do carro para trabalhar. A resposta foi rápida. "Então passe aqui que a gente conversa".
O advogado Cyro Vidal Soares da Silva, que já foi diretor e corregedor do Detran, afirma que o sistema favorece a corrupção, na medida em que não dá infraestrutura para acelerar o atendimento ao público.
Pontos vulneráveis
1 Prova práticaCostuma-se dizer que quem não paga "caixinha" ao examinador corre o risco de ser reprovado no exame, mesmo sabendo dirigir.
2 Agrado normalAutoescolas admitem que é normal dar um "agrado" a funcionários do Detran para apressar a documentação de seus clientes.
3 Emplacamento mais caroÉ difícil o dono de um carro achar a placa que deseja. Se não quiser esperar, ele poderá pagar pela mais cara, que sai na hora.
4 Pontuação transferidaEmpresas especializadas em fraudes costumam oferecer cartas fantasmas para transferir a pontuação de multas.
entrevista Miguel Lima, o Miguelzinho - ex-agente do Detran
"Ninguém cumpre nada, ninguém respeita nada"
Foto: Anderson Prado/ Diário SP
Miguelzinho foi acusadp de comandar um dos maiores esquemas de corrupção no Detran de São Paulo nos anos 80DIÁRIO_ Como o senhor vê as recentes denúncias de corrupção no Detran?
Jean Jacques Rousseau (filósofo suíço considerado um dos maiores pensadores do século 18) já dizia que a corrupção é inerente à sociedade. Isso ocorre não só no Detran, mas em todo lugar. Aliás, quem estiver atento às mazelas, às roubalheiras, às fraudes desse país e quiser aprender, inclusive, a escola está em Brasília. E só prestar a atenção.
Mas, no Detran, vira e mexe há uma denúncia. Por quê?
O Detran tem uma peculiaridade, é um órgão muito aberto, tem um fluxo de pessoas inimaginável e, por isso, a coisa aparece com mais frequência.
Autoescolas e despachantes incentivam a "caixinha"?
Na minha época, o que faziam, e eu percebia isso com muita nitidez, é que, sabendo das dificuldades do sistema, colocavam no contrato uma quantia a mais para se virarem lá dentro, e as pessoas não reclamavam.
Pagar para ter vantagem também não é corrupção?
É uma série de coisas. Você precisa submeter o carro à vistoria e, em geral, tem pressa. É um saco ir até lá, há burocracia, você perde tempo. Então, é muito mais prático dar R$ 100 a uma pessoa e se livrar daquele transtorno. É o que chamam de corrupção, mas acho uma coisa totalmente lícita, desde que não seja exigência. Eu não me submeto a isso, evito o quanto posso, assim como a maioria das pessoas. A estrutura inteira é assim. Eu vejo a engrenagem montada em cima de um faz de conta. Ninguém cumpre nada, ninguém respeita nada, ou cumpre tudo e respeita tudo. Você vê isso a olho nu. Agora, você me pergunta por que as pessoas se propõem a isso? Porque já está na cultura delas que o sistema funciona assim.
Como mudar isso?
Na minha avaliação, a estrutura político-social brasileira foi construída com material podre. Ela tinha que ser totalmente implodida e começar de novo. Tem que mudar a cultura das pessoas. A podridão vem do topo da pirâmide para baixo.
Quem alimenta mais a "caixinha", as autoescolas ou os despachantes?
Autoescolas, sem dúvida. Hoje tem o Curso de Formação de Condutores e são elas que fazem. Acho um erro. É muito fácil manipular. Acho até que você pode fazer tudo errado ou não responder e outro arrumar.
Há disputa para trabalhar em Detran ou Ciretran? É mais fácil ganhar "extras" lá?
Hoje não sei, mas antes sim, principalmente diretores. O indivíduo que coloca o lacre, por exemplo, ganha uma fortuna com aquilo. Vai junto com o documento R$ 20, R$ 30. No fim do dia chega a R$ 3 mil. Você vai escolher a placa e nunca tem a que quer. Então, eles oferecem o modelo especial, que é muito mais caro. Como você tem pressa, não pode esperar, acaba aceitando. Eles se valem disso. O Detran é um órgão de muita influência, de muita força política, então, os políticos têm interesse nele.
Veja o que foi apurado pela Corregedoria
O relatório de 129 páginas da Corregedoria da Polícia Civil aponta indícios de envolvimento de 19 delegados do Detran e 143 de Ciretrans em crimes de fraude em licitação e execução de contratos, sonegação fiscal, peculato (extorsão praticada por funcionário público), corrupção ativa e passiva, prevaricação, falsificação de documentos, advocacia administrativa e formação de quadrilha.
40 milhões de reais é o valor do prejuízo inicial da fraude.
A proposta do delegado corregedorDesvincular o Detran da Secretaria da Segurança Pública e subordiná-lo a outra secretaria de estado.
Segurança Pública só em três estados.
O Departamento Estadual de Trânsito é subordinado à Secretaria da Segurança Pública em apenas três dos 27 estados brasileiros: São Paulo, Minas Gerais e Santa Catarina.
Denatran diz que fiscalização é dever da polícia.
Ninguém assume a responsabilidade de fiscalizar casos de corrupção e desvio de conduta de funcionários nos órgãos de trânsito. O Ministério das Cidades e o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) afirmam que não têm competência para investigar e atribuem a tarefa à polícia ou ao Ministério Público (MP).
Já o Detran afirma que a fiscalização no departamento é feita tanto pela corregedoria da polícia, quanto pelo MP, Tribunal de Contas e Secretaria da Fazenda. Mas alega que a corregedoria só concluiu o inquérito recente de corrupção porque a diretoria do órgão de trânsito participou ativamente dos trabalhos.
Segundo a assessoria do Detran, a fiscalização nas Ciretrans é feita pelo delegado seccional de polícia da cidade a que pertencem, porque estão vinculadas a essas delegacias. O Detran, explica, só faz correição extraordinária quando recebe denúncia.
O advogado Cyro Vidal, ex-diretor do Detran, afirma que o grande problema nas Ciretrans do interior é a falta de oficiais administrativos para atender o público. "Como o sistema não funciona, o usuário paga para não ficar na fila", diz. Segundo ele, em algumas cidades autoescolas pagavam o salário do atendente.
O Detran nega. Segundo a assessoria de imprensa, a medida está proibida desde 2009. Além disso, foram contratados recentemente 1.733 oficiais administrativos concursados.
Os serviços também estão sendo informatizados para facilitar os usuários, inclusive emissão da carteira de habilitação.